segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

A ÚLTIMA DO ANO

a última do ano
a última lágrima do ano
a última carta
a última tapa do ano
a última foda
a última moda
a última lembrança do ano
a última esperança
a última peça do ano
a última dança
a última poesia do ano
a última agonia
a última terapia
a última fala
a última bala
a última morte do ano
a última sorte
a última ação
a última aparição
a última atração
a última vaga do ano
a última mágoa
a última flor do ano
a última dor
a última cor
a última salva
a última trava
a última palavra

CASA SEM JANELAS

enquanto caminho
ouço o barulho das palavras
elas estão soltas
entre a minha pele e a tarde
estão me contando
as minhas partes
em ordem decrescente
temo pelo meu começo
canto alto
espero atrapalhar a contagem
ou promover um ódio
que não vai me prejudicar em nada
nenhum sentimento me prejudica
estou do lado de fora
e não sei como entrar

PURGATÓRIO

quem come céus
caga nuvens
quem come som
caga música
quem come palavras
caga poesia
quem come gente
caga almas
quem come flores
caga a primavera
quem come chuva
caga enxurrada
quem come silêncio
caga solidão
quem come azul
caga o céu
quem come luz
caga o sol
quem come cantos
caga passarinhos
quem come ódio
caga sozinho

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

MALABARISMO


utilizo malabarismos
para manter meu corpo no mundo
estico a pele sobre o abismo
movo um poro por segundo
arrasto do infinitivo um laço
parecido com um passo
e movo tudo
que me deixa mudo

ESCADA

a escada avisou
tem hora de subir
tem hora de cair
tem hora de ser
inclinado
dobrado
com o peso nas costas
a escada avisou
tem hora de pensar
que agora existe a hora
de pensar que existe escada

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

DISPARO

às vezes meu coração dispara
por motivos desconhecidos
ou meu coração dispara
no mesmo momento
em que alguns pensamentos
fazem disparar o meu coração
ou em algum momento
os dois disparam ao mesmo tempo
e nunca acertam o alvo

QUASE UM POEMA DE NATAL

procuro no escuro
onde está guardada
a estrela apagada
talvez esteja pendurada
em alguma árvore falsificada
talvez esteja gotejando
em alguma nuvem por dentro
talvez esteja guiando
compradores para o centro
talvez esteja criando
algum mês enganado
onde os dias nunca se acabem
onde as horas não se desmanchem
onde os homens não se reconheçam
e se mantenham sempre no escuro
onde a estrela apagada
permanece inalterada
esperando que algum idiota
comece a procurá-la

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

DESABAMENTO

a sensação de desabamento
por dentro
me deixa sem base
caminhar requer
uma força que não entendo
os passos são pétalas
de uma flor
que ainda vai nascer
ficar significa
um amontoar de dores
das quais
sou o principal causador
desabo aos poucos
aproveito e enfeito
as quedas com palavras

A MORTE COMO PRIORIDADE

a morte não é minha prioridade
acredito que não seja
da maioria das pessoas
talvez seja prioridade
para alguns suicidas
ou para alguns poetas
o que não é o meu caso
como a morte não é minha prioridade
não tenho que ficar falando sobre isso
é um tema mórbido
triste e decididamente sem futuro
mas já que toquei no assunto
e um dia ela vai tocar em mim
não haverá mais nada o que fazer
nem preocupação
nenhuma dívida ou dádiva
nem haverá mais nenhum ar
para respirar

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

SOBRE PISAR NAS FORMIGAS

aprendi com as formigas
a nunca olhar para trás
pura perda de tempo
faz-se a curva
e procura-se outro caminho
cava-se na esperança
de encontrar o fim
mesmo escuro ainda
o esmagamento
sempre vem por cima

ACONTECIMENTO

isso que acontece
entre a página e a palavra
esse frio
quase imperceptível
que penetra por dentro
do osso
do pensamento
e o equipara
a qualquer movimento
entre o desejo
e o espelho

O SORRISO DO MORTO

por mais organizado
que seja o morto
sempre fica algo solto
organizar o próprio funeral
por exemplo
não vai dar tempo
sempre vão escolher
as flores erradas
as roupas erradas
o modo errado
de se livrar do corpo
ao morto não cabe
nem sorrir

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

ENGARRAFAMENTOS

o sangue parou de correr
nas minhas veias
mas já enfrentei engarrafamentos
piores do que esse
quando a minha alma
parou de correr entre as flores
ou quando o vendaval
não afagou minhas dores
água parada
ou sangue parado
não faz diferença
quando só se tem
a palavra como referência

LICENÇA POÉTICA

a poesia permite tudo
inclusive isso
fora isso
nada é permitido

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

BELIGERÂNCIA

sento diante do adversário
a palavra diálogo se coloca entre nós
e forma uma nuvem densa
repleta de ossos e sangue
não nos enxergamos
retiramos os corpos do lugar

RAIZ

não sentir-se na multidão
sentir-se um desmanchar entre as pessoas
caminhar igual a uma parede
repleta de prumos e sede
curvar o passo antes do toque no chão
raiz enlouquecida
que tenta respirar por dentro da terra
e não se enxerga
estende a mão para o alto
até formar uma árvore

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

PRODUTOS DA IMAGINAÇÃO

as cores
assim como as palavras
são produtos da nossa imaginação
como também são produtos da nossa imaginação
a morte o medo e todos os sentimentos
tudo que escrevo
é produto da minha imaginação
como também nesse momento
sou produto da imaginação de alguém

EXPELIDO


minha cama me rejeita
da sua boca fico pendurado
como parte de uma saliva
mal cuspida
agarrado ao sonho
sou expelido para fora da vida

O PIOR AINDA ESTÁ POR VIR

a morte enfim
o pior ainda
está por vir
nada de luz
ou anjo ou caminho
nada de repouso
apenas escuridão
dor sem nome
solidão em dobro
a sensação de imobilidade
de incapacidade de sentir
inclusive medo

A QUALIDADE DO SANGUE

a qualidade do sangue
não interfere nas pessoas
nem as pessoas interferem
na qualidade do sangue
o que importa no sangue é o tipo
não importa para que tipo de pessoa
mas certos tipos de pessoas
não merecem nenhum tipo de sangue
nem o sangue de qualquer tipo
merece fazer parte de certos tipos de pessoas
a qualidade das pessoas
não interfere na qualidade do sangue
seja qual for o tipo o sangue age
independente do tipo da pessoa
o sangue tem cor
mas não tem sentimento
se o sangue agisse
conforme o tipo da pessoa
e não conforme o seu tipo
não teria muito tempo pra correr
entraria mudo e assim ficaria
até calar quem deveria

RESPIRO

sufocado pelos sonhos
procuro ar de qualquer tamanho
uma bolha numa folha
qualquer sopro me salva
solto ar pelas palavras
embaço meus olhos
minha fala

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

COMOÇÃO

mergulhei no corredor da comoção
à procura de alguma poesia
não tenho nada no coração
nem sangue
nem alguma forma de pisar
que forme algo parecido com um passo
arrasto o meu corpo com o auxilio do não
e o silêncio é o único lugar
onde consigo me alcançar

CAFÉ DA MANHÃ DO CAVALO

cercado de capins e com fome
solto na manhã antes do sol
abocanha a refeição e a arrasta com força
mastiga e rumina
seu pensamento e a comida
misturam-se com o cheiro de tudo
que a manhã exala
o sol nem vai estar nas suas costas
quando parar de comer
nem vai estar seu pensamento
alguém vai direcionar o seu caminho
montá-lo ou prendê-lo a algum veículo
a exemplo do poeta
alguém vai pensar em seu lugar

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

A PROPÓSITO DE QUEDAS

durante o recolhimento dos meus ossos
senti o olhar interrogador do público
queriam respostas ao desmantelamento
afogado numa poça de sangue
terminei os procedimentos
e limpei as mãos nas sobras das roupas
ou em algo parecido com elas
expliquei o mundo visto do espaço
e a súbita aproximação da terra
interrompendo o voo
e a possibilidade de transformação da dor
em algo parecido com a poesia
poucos entenderam isso
querem beleza onde não existe
então me espreguicei e contorci meu corpo
o máximo possível
tentei me transformar numa flor
mas só consegui isso

MEDIOCRIDADE


de vez em quando
a mediocridade me dá uns solavancos
me vejo escrevendo sozinho
lendo sozinho o que escrevo
destruindo sozinho o que li
resolvi essa parte da minha vida
agora penduro palavras
em paredes que serão demolidas

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

SOBRE NUVENS


do alto
mesmo reconhecendo a inutilidade
das asas desenhadas em nossas costas
contemplamos as nuvens
suspensas por fios invisíveis aos nossos olhos
nos ensinam a precariedade do espaço
do alto
parecem pobres
mas espalham suas riquezas em formas azuis
parecem podres
mas exibem seus músculos claros
ao erguer os nossos corpos
antes da queda

POSIÇÃO DOS BRAÇOS

posiciono meus braços
por dentro do corpo
coço a minha alma
onde posso
ouço onde movo
meus ossos
movo o que posso
meu ócio
alcanço o que coço
em sentido contrário
meu corpo por dentro
do meu braço
sufoco minha alma
num abraço

CHUVA NO TELHADO

não ouço mais
a chuva no telhado
nem sinto o seu cheiro
lembro de um antigo filme
onde eu era um figurante
ao fundo quase apagado
soltando um barquinho de papel no córrego
o barulho da chuva me fazia protagonista
hoje sou apenas mais um figurante sem telhado

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

DENTES DE AÇO

cuido dos meus dentes
ou troco de carro?
a infecção num dente
pode se espalhar por todo o corpo
um carro quebrado
pode infeccionar toda a cidade
melhor trocar de carro
e chegar ao dentista
no horário

PEDRAS AO AR


pedras suspensas me preocupam
se estão no ar
algum buraco afastou parte da terra
ou a terra soprou
por algum motivo
as pedras no ar
ocupam o meu lugar

QUERO SILÊNCIO

não me estraguem com palavras
se querem me estragar
tragam silêncios
de preferência
repletos de ruídos
costurados por dentro
apenso uma faca cega
e pouco tempo

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

ABRIGADO

abrigo-me na sombra
formada pela chuva
antes de cair
o sol guardado no meu bolso
queima meu testículo esquerdo
pareço ter medo
mas permaneço imóvel
sob a marquise
transpirando uma ideia
maior que o dia

O SEXO DE HILDA HILST


se havia uma flor
sobre o sexo de Hilda Hilst
ela nunca vai saber
mas nada disso vai mudar o poema
nem a maneira pela qual
decidi viver

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

DEPOIS DA PALESTRA

perguntaram-me sobre a palestra
declinei da demonstração
insistiram na verdade
eu ainda estava a me recuperar dos sustos
palavras gestos olhos que nunca vi
então resolvi discorrer sobre o assunto
não sem uma certa eloquência
e menos brilho que a ocasião real
pareceu pedantismo
usar todo aquele aparato na resposta
mas era o que podia fazer naquele momento
como também nada foi entendido
como deve ser toda palestra
no momento exato em que acontece
e depois ao discorrer sobre
o mesmo assunto

À BEIRA DO ESPELHO

sento à beira do espelho
na esperança de me ausentar
procuro um abismo que me comporte
minhas pernas misturadas ao reflexo
insistem em me puxar

PEIXE FORA D'ÁGUA

os peixes que sabem
que pertencem a alguém
dobram a água de modo diferente
e a guarda em alguma gaveta atrás do sonho
mas nunca dormem

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

ALTURA DO OSSO

queria ser triste
para isso é preciso coração e pele
duas coisas que não tenho
meu arrepio funciona
na altura do osso
meu sangue circula
sem bombeamento
queria ser triste
mas a vida
é mais absurda do que isso
apenas pareço

PUREZA

resolvi tornar-me puro
fico perto das palavras
e longe das pessoas

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

POÉTICA 12


sinto grandes dificuldades
em pronunciar certas palavras
estas por exemplo
prefiro escrevê-las

QUATRO PILHAS

farmácia também vende pilha
comprei um conjunto com quatro
resolvi engolir em dose única
assumi o risco da superdosagem
a primeira foi difícil engolir
as outras três desceram mais fácil
passo o dia engolindo
coisas desagradáveis
engulo o dia
por exemplo
o dia que não me cabe

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

INCISO

muitas coisas
foram retiradas
outras ficaram por dentro
algumas retiradas
foram identificadas
outras não
as que ficaram por dentro
desconhecidas como o lado de dentro
ficaram por dentro
melhor abrir tudo
melhor não esperar cicatrizar

DEZEMBRO

troquei a codeína
pela cocaína
os sonhos não me protegem
melhor manter-me aceso
roçando a cabeça nos pavios
dezembro chegou antes da hora
desorganizou a madrugada
como se soubesse mentir
respiro com menos dificuldade
do que vivo
finjo que bocejo para enganar a tarde
a noite cai aos pedaços
nunca recebo a melhor parte

FUGA PRIMEIRO MOVIMENTO

quase no fim
a vida te arrasta de volta
as dores nem começaram
apenas os cortes
ainda sem sangue
o corte apenas sem dores nem sangue
lâmina que só um poema pode conter

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

FELICIDADE

estava quase na mão
que foi levada

TRAMBOLHO

arrasto o meu corpo
com grande dificuldade
para fora da solidão
mas a minha alma
permanece por lá

SAL DO MEU OLHO

a chuva de domingo
retirou o sal do meu olho
e as pegadas que deixei
entre as perdas
colinas estragadas pelo sonho
carregadas de dunas
parecidas comigo
mais salgadas
mais brancas
mais longínquas

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

CABEÇA CORPO

minha cabeça está acordada
mas meu corpo está dormindo
minha cabeça queria um corpo acordado
meu corpo queria uma cabeça dormindo
meu corpo sonha um sonho sem cabeça
minha cabeça pensa que caminha mas só pensa
meu corpo espera uma cabeça que adormeça
minha cabeça quer um corpo que pereça
minha cabeça ainda vai encontrar meu corpo
espero que nunca esqueça
meu corpo ainda vai reencontrar minha cabeça
espero que mereça

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

EXPONDO AO CONTATO

exponho ao contato
a palavra
poucos se atrevem
o ambiente nunca é propício
ainda mais para o que é escrito
palavras no vento quase esquecimento
palavras na pedra muda a treva
exponho ao contato
todas as palavras
principalmente as inventadas
as que ainda nem sabem o que são
fincam na pedra
o sangue do silêncio derramado
cruzam a pedra
descobrem tudo do outro lado

A POESIA SABE

organizar a escuridão
a poesia sabe
uma luz que cabe
exata no olho
o espaço preciso
para o tato
organizar o tempo
a poesia sabe
a hora que exala
de cada fala
o momento intenso
do esquecimento
a poesia sabe

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

POTENCIAL OFENSIVO

meu potencial ofensivo é pouco
só tenho palavras e silêncio
ou me escondo nas palavras
ou me exponho no silêncio

terça-feira, 26 de novembro de 2013

ALGO PARA FALAR AO TEU OUVIDO

algo para falar
ao teu ouvido
bem de perto
mas estou nesse deserto
estou mais perto
da morte
que do sentido
falar ao teu ouvido
vai ser sorte
guardar a palavra
na lágrima
mais provável
guardar na pedra
na perda
mais provável
gravar a palavra
num grão de areia
e soprar até
que atinja a praia
e a palavra
misturada à água
será apenas grão
nunca mais fala

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

PULSO

não pense que amanhã
não vai ter agora
não morra antes da hora
olhe para o relógio
preste atenção
sincronize com seu coração
não precisa ir fundo
pra saber que a vida
acaba em menos de um segundo
não pense que ontem
existe agora
o pensamento não move a hora
move o que tu queres
mas o querer demora

SOL DEITADO

o sol quadriculado
cruza a rua
usando óculos escuros e salto alto
mais lindo que um incêndio
corta os pulsos
utilizando um rio
esse veio de luz
nem permite a sombra
encostado ao meio fio
sente o mundo se apagar
com calor

MISTÉRIO

não há mistério
o que pensas ser tua alma
vai apodrecer
juntamente com teu corpo
não vai sobrar nada
apenas a escuridão
maior que a tua sombra

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

VISÃO SOTURNA DO PÁTIO AO LADO

então é para isso que existimos
parecermos lúcidos
seguirmos a trilha determinada
a alma bem comportada
o comprimido nos remete
para uma lucidez
onde nos sentimos estranhos

VISÃO NOTURNA DO PÁTIO AO LADO

mais inútil
que um homem num hospício
é uma luz no hospício
pensar no escuro como parte da lucidez
lembra um sol guardado no armário
e a chave perdida do armário
que foi escondida sob a língua
junto com o comprimido
inúteis homens se amontoam
no pátio ao lado
abraçam o vazio
e sentem dois corações pulsando

VISÃO DIURNA DO PÁTIO AO LADO


o sol não precisa de princípios
ninguém o alcança
eu pensava assim
descobri que alguns pelos
cabelos dentes pensamentos
cabem em raios solares
quando tropeçamos
ontem no pátio
o sol aprisionado nas palavras
mostrou-se frágil
e se escondeu nos gestos
dos homens que eu pensava fragmentados
mas estavam completos
de afetos

O CHEIRO DO MEU PAI

o suor do meu pai
brilhava na tarde
e o seu cheiro de negro
que eu ainda não sabia que era de negro
perfuma agora
a minha memória

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

CAMINHO INTERROMPIDO

não temo o escuro
nem as cores
caminho com o braço erguido à frente
dispenso apoios
espero o abraço do precipício

OBSERVAÇÃO

uma televisão sobre a grama
não garante uma boa imagem
dependendo da altura da grama
do tamanho da televisão
da posição do observador
mesmo que a altura seja boa
e a posição do observador também
nada disso vai garantir uma boa imagem
vai depender do que se entende por uma boa imagem
por mim está tudo bem
a televisão a grama
eu não observo nada

ITINERÁRIO

volto para casa
devo ter parado durante o caminho
não me recordo
percebo que não estou com meu corpo
alguém deve estar com ele
nesse momento
agradeço
o que sobrou de mim
a casa não reconhece
vomita a minha presença
pela tarde
molho o caminho de volta
aos pedaços

CÉU DE BRASÍLIA

furamos o céu de Brasília
nada aconteceu
nem o azul se derramou
nem a lamina se sujou
furamos mais vezes
com fúria rasgamos o céu
esfarelamos nossas forças
e o céu ainda
imóvel
enfileirado no eixo monumental
olha o nosso cansaço
e boceja um bocejo simples
asa na boca do planalto central

PRIMEIRO LUGAR

dizem que a chuva modifica a paisagem
inclina o olhar até que ele se derrame
antes da água da chuva
ardências turvam as ondas
como se fossem de fogo
carregamos nossos olhos pesados
independente da chuva ou do estio
a cabeça é o primeiro lugar
onde o sol ou a chuva vai chegar

PROCLAMAÇÃO

proclamo-me ainda pendente
dependo do que clamam
do que chamam
ou do acidente
proclamo-me ainda pedante
sou maior do que sou
não caibo no mundo
minha vida um segundo
proclamo-me ainda pedinte
quero pouco quero tudo
até o dia seguinte
proclamo-me livre
posso ficar absorto
ou posso correr solto
até atingir às grades

terça-feira, 19 de novembro de 2013

ALGARAVIA

a posição no espelho
não é a mesma
posição do corpo
a posição do vivo
não é a mesma
posição do morto
essa descoberta
constava no compêndio
agora é só dispêndio
poderia ser algaravia
virou poesia

EXERCÍCIO DE DEIXAR

deixo o corpo
dentro do copo
o tempo trancado por dentro
deixo a chave amolecer
deixo o meu pranto
no formato de flores
deixo os meus braços
formando lagos
deixo que me deixem
entre a terra e a água
deixo minha boca
sangrando beijos
deixo letras
no que vejo

PESO DA MALA

a dor não cabe em mim
carrego numa mala
deseja-se boa viagem
desconhecem a bagagem
onde vou chegar
com essa dor
parece mais tranquilo
sei que não voltarei
não quero esse lugar
nem quero outro
a dor não sabe
que não cabe em mim
sobra ao meu redor
lembra uma sombra
cujos gestos
antecipam-se ao meu corpo

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

COMO LER UM POEMA

se não for necessário
não leia
se não tiver mais nada pra fazer
invente alguma coisa
não direcione o olhar
para este lugar
nem peça que leiam
se quer sofrer
sofra sozinho
se não houver
mais nenhuma alternativa
então leia
leia de pé
o mais depressa que puder
vai faltar alguma palavra
alguma palavra será trocada
então a leitura será perfeita
não será o que o autor queria
se é que ele quer alguma coisa
se preferir ler devagar
puxe uma cadeira
ponha uma caixa de lágrimas ao lado
ou procure um sorriso no bolso
se não tiver nada disso
não faz mal
seus olhos vão sumir depois de tudo
leia como se fosse outro idioma
ou um idioma que tivesse aprendido
mas que foi extinto
talvez assim
tentando lembrar o significado
dessas palavras estranhas
descubra que não é um poema

terça-feira, 12 de novembro de 2013

EIXO MONUMENTAL

multinacionais colorem o conjunto nacional
as colunas retas de Mané Garrincha
a torre de tv que não aparece na tv
o memorial só guarda as iniciais
os livros enfileirados na porta da biblioteca nacional
o futuro defeca museus curvos
as mãos do ateu na catedral
ministérios numa fila que nunca se acaba
os pratos do congresso que nunca são lavados
o supremo cercado de vidros frágeis
o planalto equilibrando o palácio
as curvas sem memórias
equilibra ao fundo a alvorada mergulhada no lago artificial
o corpo do avião bate as asas debalde

BRAS/ILHA

muito cimento
poucas sementes
muito espaço
pouco abraço
muitas retas
poucas metas
muito estio
muito vazio
poucos ventos
pouco lentos
muitas quadras
poucos quadros
muitas curvas
poucas luvas
pouca cruz
pouca luz
muita terra
pouco mar
muito incêndio
muito silêncio

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

CÉU VERMELHO

o céu estava vermelho
mas depois passou
eu também estava vermelho
mas depois passei
agora estou chovendo
em algum lugar desconhecido
acordo mais
como o barulho da água
do que com o que ela
pode fazer com o meu corpo

RECAÍDA


durante a recaída
nunca estou por perto
alguém assume o meu corpo
cria um deserto
e entope de areia
minhas artérias
meu corpo estranho
arranha o olho do tempo
e a visão embaçada
não permite ver nada
invado outros corpos estranhos
duplico o meu tamanho
mas não me alcanço

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

LEITO

leito seco
igual ao peito
coração esmagado
pelo passado
manchas de sangue
desenham artérias
sentir-se morto
ainda é pouco
o medo
escorre impávido
igual ao rio
que esqueceu de deitar

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

POR DENTRO DO MUNDO

alguns não entendem
o mundo por dentro
preferem caminhar pelas ruas
à procura de flores no asfalto
encontram corpos abandonados
aparentemente vivos
porque estendem as mãos
solicitando respostas
no entanto o tempo
só pronuncia perguntas
não há outras palavras
para quem só mastiga o mundo

terça-feira, 5 de novembro de 2013

NO BOLSO DA MORTALHA

nos bolsos da minha mortalha
cacos de vida
outros objetos preenchem a gaveta
como as marcas dos meus pés
criarão algum caminho
entre a tarde agachada sob o vento
e a noite esfolada pela escuridão
o suor desenha um mapa em minha testa
o mapa do inútil esforço
de tentar mover o corpo
gostaria de sentir o gosto da liberdade
minha língua é falada em outro canto

SONHO CURVO

quando o sonho é curvo
parece tudo mais fácil
um sono sem arestas
anula o turvo
ledo engano
o preciso precipício
espera novas quedas
a poesia é uma delas

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

CRUZANDO LINHAS

não ultrapasse essa linha
nem a próxima
o caminho está cheio dessas linhas
principalmente as imaginárias
não ultrapasse
só isso que eles sabem dizer
eu finjo que ultrapasso
sem saber

BOLERO DE PAPEL

ela nem está olhando para você
e você continua falando essas coisas
ela está pensando na canção
que você não fez para ela
está pensando no último
capítulo da novela
está pensando na pensão
que você vai deixar quando morrer
ela está pensando em tudo
menos em você
então para que ficar falando
para quem não está nem olhando
pense em você em algum momento
recolha-se ao vaso do esquecimento
e no dia em que ele se quebrar
você vai se encontrar em algum fragmento

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

AFINAL HOJE É SEXTA-FEIRA

gostaria que a chuva corresse
corresse intensamente
e sem parar
corresse até cansar
e quando cansasse
procurasse um lugar bem longe
para descansar
descansar bem longe daqui
afinal hoje é sexta-feira
amolei meus dentes e minhas unhas
a minha alma está armada
ao lado da barraca do sonho

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

FALO

falo faca
corto
falo flor
afeto
falo fezes
defeco
falo falo
penetro
falo feto
fecundo
falo alto
abundo
falo foto
paraliso
falo afago
aliso
falo claro
proclamo
falo calmo
apanho
falo dentro
aplaco
falo centro
apago
falo muito
agito
falo pouco
grito
falo sim
discordo
falo não
acordo
falo voo
aumento
falo chão
cimento
falo tarde
entendo
falo cedo
acendo
(...)

ESPAÇO IMAGINÁRIO

tão inútil
quanto um peixe no aquário
que conversa
com seu rio imaginário
eu atravesso
o espaço que me permitem
e me imagino
conversando com meu avesso

terça-feira, 29 de outubro de 2013

POR ONDE A POESIA PASSA

não há
outro lugar
é por aqui
por onde passa a poesia
passam os teus olhos
teus ouvidos
sem perceber o perfume
carregando o tempo
nas costas
da luz

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

QUANDO HAVIA

quando havia um corpo
era pouco
cabia num copo
quando havia roupas
eram muitas
cobriam corpos
quando havia tempo
quase lento
cabia num momento
quando havia outros
não sabia
outros o encolhiam
quando havia fim
não permitia
do fim
é onde tudo se inicia
quando havia palavras
não se enganava
dizia tudo
quando se calava

TÉCNICAS DE AUSÊNCIA

a técnica da ausência
consiste em se fazer amargo
assim como uma flor parece frágil
e se desmancha só com um olhar
meu cata-vento procura rodar
de acordo com o momento
agora está difícil
breve será fácil
meu sangue pulsa
sem demonstrar habilidade
precisa de guias para alcançar
o outro lado da cidade
eu me faço de amargo
e não disfarço
quem quiser sorrir sozinho
procure ouro

MEU AMOR ESTÁ TRISTE

meu amor está triste
igual a flor que esqueci no espelho
mergulhada no aço não a enxergo
mas ela me enxerga por dentro
meu amor está triste
não atinge o sonho que não tive
minha cabeça aos pedaços ainda resiste
e forma o espaço que me cabe
meu amor está triste
igual ao osso sem a pele
flor que forma o laço que a expele
meu amor está triste
sem saber comer o som
mastiga o barulho do mundo
até formar esse espaço
entre a ausência e o abraço
meu amor está triste
como um caminho sem perdas
malas carregadas de absurdos
provocam rupturas lentas
meu amor está triste
mas é meu mesmo triste
e ao ser triste me mostra
que nada que é meu existe

terça-feira, 22 de outubro de 2013

CRIANÇAS NÃO GRITAM NO INFERNO

crianças não gritam no inferno
porque ninguém vai reprimi-las
esse é o seu inferno
o desprezo adulto
mesmo que gritassem não seriam ouvidas
porque ninguém escuta no inferno
esse é o outro inferno
não ouvir crianças
e mesmo que gritassem e fossem ouvidas
não seriam entendidas
porque o idioma do inferno é individual
esse é outro inferno
cada um fala o seu idioma
e o universo dos gestos
fica perdido
entre a tentativa de fugir desse absurdo
e a de sobreviver ao que puder ser traduzido

O GATO E A VITRINE

um gato flerta

com os manequins da vitrine

pensa em lambê-los

contenta-se em lamber o vidro

arranha a marca da saliva com a pata

na superfície transparente

aos poucos o vento

apaga o seu desejo

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

FACA NO CORAÇÃO

depois da primeira faca no coração
tudo ficou mais fácil
acostumamos com tudo
o sangue derramado
a gravata manchada
a ponta do sapato
o terno rasgado
a respiração cortada
a vista escura
a sensação de ver aquela árvore pela última vez
um cheiro de ferrugem
uma parede que foge e nos deixa cair
sobre o assoalho cuja pequena mancha amarelada
só agora é descoberta
cuja origem não vai dar tempo de descobrir
nem quem a provocou

INTRODUZINDO CURVAS

introduzo objetos
em meu corpo
eles saem pelo outro lado
um lado que não consigo alcançar
e aos que alcançam esse lado
peço que recolham tudo
inclusive as curvas
introduzo curvas
em meu corpo
elas o fecham
e aos que não enxergam o meu corpo
esqueçam tudo
inclusive os objetos

BENEFÍCIO DAS PALAVRAS

então é isso
não sei se essas palavras
vão trazer algum beneficio
então as segure assim mesmo
sim nessa posição
assim elas conhecerão o chão
a partir do céu pendurado em suas veias
até alcançar as curvas de um grão de areia
fique assim com essas palavras
dessa maneira
fogo desenhando a sobrancelha
sobre o olho que fechado te acalma

VENDAVAL

certa vez deixei-me levar
por um vendaval de livros
cada palavra um pensamento
porém sem as páginas
parei nesse momento
não sei meu corpo
entre uma palavra e outra
minha alma
vomita outros ventos
para dentro

sábado, 19 de outubro de 2013

TAXIDERMISTA

meu taxidermista
chegou atrasado
metade do meu corpo
empalhado
a outra metade
briga com a alma
por mais espaço
a alma se apavora
e vai dormir lá fora

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

MERECIMENTO

passei o dia mal ontem
isso não deveria estar aqui
o poema não merece isso
nem eu mereço
quando o poema está mal
ele não me visita
ele sabe que não mereço
nem ele merece

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

UM PEDAÇO

uma hora
depois de aberto
o mundo refez
o pedaço mais perto
algo parecido
com o homem
bateu em seu peito
carne inaugurada
alma tensa
espalhou ao redor
um sorriso
aos que enxergaram
um abismo
da sua boca
essas palavras
costuraram o tempo

CORRENTE

a água corre em Oklahoma
corre em Botsuana
em Copacabana
a água corre incessantemente
corre da gente
pra gente
incontinenti corre
na malásia
na praça Strausberger
corre depois da lágrima
a água corre sem parar
na linha férrea
corre no ar
equilibrando parábolas
a água corre
sem cansar

NUBLADA

pombos espalham o ar
ao redor do túmulo
a chuva empurra a tarde
para baixo
empurra também o morto
tudo para baixo
menos os pombos
treinam a teimosia
de voar contra o tempo

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

BATER DE UM CORAÇÃO

nada vale o bater de um coração
mesmo suave
mesmo de leve
quase breve
vale o intervalo
entre uma batida e outra
talvez
a vida nos espere
em algum lugar
onde nunca vamos chegar

terça-feira, 15 de outubro de 2013

PELA METADE

os pinos que prendem
minha carne à chuva
são feitos de rosas
poucos sabem os pedaços
que cabe em cada passo
meu músculo perfuma
o lado de dentro do corpo
ainda pareço inteiro
embora falte o começo
da chuva mereço a curva
causada pela verdade
inundo outros corpos
até a metade
e o restante cuspo
até cobrir a cidade

ESCORA

pouca coisa
escora a terra
a poesia é uma delas
as demais
não sei ainda
talvez quando a terra
sair de cima

QUEDAS

palavras desabam
esmagam os vãos
tão leves
que nem sentem
quanto tocam
o chão

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

O PESO DO MUNDO

entre o mundo lá fora
e o mundo aqui dentro
esse momento
reduzido a palavras
ou a algum sentimento
que mesmo desconhecido pelos mundos
os torna um pouco mais pesados

POEMA DESENHADO

desenho melhor com a urina
do que com o esperma
costuro calças
que vou usar por cima
mergulho em cacimbas vazias
misturo o sangue ao musgo
procuro incêndios
que eu não tenha provocado
e mostro minhas queimaduras
de culpado
quero o centro
não o do mundo
esse é fácil
quero o centro de tudo

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

MIGALHAS

olho através de mim
e não me enxergo
devo ter partido para sempre
ou faço parte de tudo
talvez meu olho
não caiba no mundo
ou o mundo
me olhe atravessado
a vida é longe
não consigo alcançá-la
no meu bolso
migalhas

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

CRIANÇA

nunca fui criança
a luz que me foi dada
estava apagada
não compareci
à cerimônia do meu corpo
introduziram palavras
em minha boca
de um peito envenenado
a inocência foi um parto que perdi
restou à placenta
mostrar que o mundo aumenta
em cada poro
mostrar que a morte
é um rio sonoro
que faz de cada corpo
um porto

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

MADRIGAL DE OUTONO

não há folha
para ser inscrita
a árvore vazia
é guardada na memória
como uma flor no meio da página
o que se espera do vento
é que haja sentimento
a lágrima lambe a face
usando a língua do outro
as folhas pisadas
pronunciam um barulho
que acorda o dia
para uma luz parecida
com o sonho

ENTRE AS PALAVRAS

o homem mudo
abre a página
com um parágrafo
o que vem depois
não é com ele
nem sempre
após o silêncio
há palavra
nem sempre
há silêncio
entre as palavras
o homem mudo
pronuncia com seu corpo
uma ausência
parecida com o silêncio

terça-feira, 8 de outubro de 2013

VERTEDOURO

as palavras escorrem
pelo canto da minha boca
se fossem de água
eu as enxugaria
se fossem de carne
eu as comeria
se fossem de ar
eu as sopraria
mas apenas escorrem
e formam essa margem
ao lado da minha boca
como se eu falasse

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

EDIFÍCIOS

existem edifícios
mais belos que algumas árvores
os moradores das árvores
não sabem disso
e enquanto amarram seus cantos
entre um galho e outro
constroem com seus voos
edifícios de ar

sábado, 28 de setembro de 2013

EXERCÍCIO RESPIRATÓRIO

preciso melhorar o meu fôlego
canso muito
caminhando entre o purgatório e o inferno
o inferno da palavra não tem fogo
é tudo silêncio e jogo
em raros momentos
a palavra se desprende do meu corpo
e se estende em correnteza própria
até alcançar a foz de outro olho
tornar-se mar ou somente sal

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

SOMBRA

difícil uma sombra
do meu tamanho
não caibo no mundo
do olho do sol escorro
interrompo o brilho do seu rosto
como uma lágrima inacabada

INVERNO DE VIVALDI

no inverno de Vivaldi
a chuva é de plástico
mas ele não sabe
mastiga a neve sob os olhos da tarde
enquanto espeta notas no silêncio
mas ele não sabe
apenas estica as tripas sobre os braços do violino
escuta o barulho da água subindo
talvez se molhasse se tivesse um corpo
Vivaldi é só sopro

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

SE A POESIA CHOVESSE

se a poesia chovesse
e movesse a minha cabeça
entre uma margem e outra do rio
talvez eu me dragasse do vazio
e preenchesse sem as minhas partes
a parte que me cabe no infinito

O POSSÍVEL PARA ME COMOVER

até o final desse poema
farei o possível
para me comover
começarei utilizando palavras
depois imagens
acrescentarei alguns silêncios
farei o possível
para não fugir do assunto
agora eu posso dizer
que a minha dor
brilha no escuro
como estou cego
e sem braços
apenas sonho
você que alcança o brilho
retire a minha dor
para a luz

terça-feira, 24 de setembro de 2013

SOMBRA ÚMIDA

o modo de mastigar
a umidade da sombra
modificou meu modo de morder
eu usava o corpo como dentes
a alma gengiva de água
a alma como dantes
a calma como dentes
meu modo de morder
modificou meu modo de viver
alimentos que me amparam
a sombra que me marca

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

CIGARRO

decidi escrever apenas
sobre coisas sem importância
a vida a morte a tristeza
são mulheres com as quais
nunca vou me envolver
ficarei solteiro
fumarei o que me sobra
usando os papéis
que o mundo me reservou

SOBRE OS TELHADOS DA CROÁCIA

eu ouvi os passos
enquanto me espreguiçava
sobre os telhados da Croácia
eu parecia maior do que merecia
menor do que esperava
eu era uma estrela que não brilhava
aliás as estrelas não brilham
brigam por um espaço
no nosso olhar

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

O CHEIRO DA CARNE DA MINHA MÃE

todo domingo é útil
se a carne necessária estiver presente
caminhamos pelo corredor quadriculado da toalha da mesa
soltando pequenos pedaços das lembranças
para não esquecermos o caminho de volta
cravamos o garfo no idioma pensado
e sentimos o molho descendo pelo olho
utilizamos a faca para separar o ontem do hoje
enquanto o punhal do futuro nos aprisiona ao passado
queremos a mesa farta de ilusões
queremos comer tudo mesmo com a boca costurada
bebemos a água da chuva enquanto nos evaporamos
brindamos com formigas as folhas de papel em branco
criamos irmãos entre um galho e outro
e das suas bocas os frutos que nos condenam
matam a nossa fome em doses lentas
todo domingo é necessário
se o cheiro estiver instalado
a auréola do peito comemora a boca perdida lá fora
enterramos nossos pés num quintal imaturo
usamos o restante do corpo como lápide
e marcamos o local com cuspe
gravamos nossos nomes nas costas da tarde
e ela nunca saberá os nossos nomes
retiramos os olhos para dormir
e os esquecemos para sempre em algum lugar
plantamos o que desejamos e esquecemos de regar
não sabemos de onde vem esse cheiro
queremos senti-lo para sempre
enquanto o pulmão só quer o oxigênio


quarta-feira, 18 de setembro de 2013

COMENDO NUVEM

nem sempre
quem come nuvem
está no céu
comi nuvens
quando estava enterrado
comi nuvens
quando estava apodrecido
como nuvens
flutuo acima dos cascos
procuro ser mais claro
que preciso
procuro ser pesado
quando necessário
como nuvens
me desmancho
e inundo a parte alta
do mundo

A CADA DOIS DIAS

meto a cada dois dias
os pés pelas mãos
chuto gestos no deserto
as sombras das pegadas
serpenteiam
até surgir do não areia
meto a cada dois dias
a cara na parede
deixo a minha pele
criar o poro sem a sede
meto a cada dois dias
um poema no silêncio
instalo asas vazias
que não me livre do incêndio
meto a cada dois dias

PAUTA DO DIA

a pauta do dia
se inicia com o canto do passarinho
depois o canto dos automóveis
recolhem o canto do passarinho
em algum outro canto do dia
eu recolho os dois cantos
e os guardo aqui
na poesia

terça-feira, 17 de setembro de 2013

ESSA CARNE

preciso me desvencilhar dessa carne
que cobre os meus olhos
e me impede a miragem
preciso me desvencilhar dessa carne
que cobre a minha glande
e me impede a mensagem
preciso me desvencilhar dessa carne
que me invade
e me impede
preciso me livrar dessa carne
que me torna mais leve que o osso
preciso escapar dessa carne
que me trava o sono
e impede a passagem do sonho
preciso impedir essa carne
comer minhas frases
arrotar minhas fezes
demolir meus disfarces
preciso esquecer essa carne
em algum balcão de embarque
em alguma ladeira abaixo
da altura do meu canto

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

BORBOLETAS

borboletas sobrevoam nossos corpos
e não aprendemos a ser flor
temos a cor e o perfume
e não conseguimos mastigar o estrume
borboletas sobrevoam
nossos ossos nossos órgãos
e não alcançamos
a altura da dor

NATUREZA VIVA

há um quadro
em minha cabeça
que eu não consigo reproduzir
é composto de cores
que nem existem
personagens de um mundo distante
sentimentos imaginários
misturo ao meu sangue
mas não tenho pulso para abrir
restam essas palavras
que nem sangue nem água
muito menos as tintas impronunciadas

ZONA ERÓGENA

a zona erógena do sol
é a sombra
principalmente quando está molhada
não se explica a sua água
nem a mão que acolhe
a zona erógena do silêncio
é a palavra
não se aplica se for escrita
erógena é a palavra falada
falo o que atravessa
e empala

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

DESENHOS


os desenhos na página
desviam a atenção
portanto observem as palavras
sem prestar atenção
nos desenhos que elas formam

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

SE ACASO PERGUNTAREM POR MIM

se alguém perguntar
diga que não vou voltar
é preciso que esse espaço
esteja limpo
é preciso ocupar
o outro espaço
dos desaparecidos
espaço onde não cabem lembranças
e o corpo pareça
aumentar o espaço

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

SENTIDOS

para que olhar
se a escuridão é ar
para que ouvir
se o silêncio é o melhor lugar
para que tocar
se nunca vai estar
para que comer
se não há o que digerir
a poesia não precisa de sentidos

INTESTINO E ALMA

meu intestino funciona
várias vezes ao dia
minha alma também
não sei como parar
meu intestino
a alma eu sei

INCÊNDIO

por enquanto
fico por aqui
se aparecer alguma ideia
eu mando para ti
farei meu
o teu silêncio
farei o possível
para não apagar o incêndio
enrolarei o mundo
e o guardarei no meu fundo

ROTA

trezentas bicicletas
ruminaram esse caminho
por onde não sei
andar sozinho
minhas mãos procuram um amparo
um corrimão uma bengala
encontram um braço de rio
de tanto liquefazer
desaprendi a caminhar sobre as águas
afundo antes que as pernas
descubram a verdadeira rota

terça-feira, 10 de setembro de 2013

OS LIVROS DA MINHA CASA

não havia livros
em minha casa
eu os fabriquei
com as folhas de papoulas
que havia em meu quintal
palavras que eu não sabia
criei juntando borboletas
formigas lagartas
e outros insetos
que com o tempo
comeram as minhas asas

PEQUENO SEGREDO

sou alegre
por parte de pai
triste
por parte de mãe
meus irmãos
não temperam insultos
fabricam desenhos
quando interrogados
eu finjo que estou sóbrio
quando mordo o mundo
entre as minhas secreções
incluo a poesia
é viscosa
cheira mal
mas ocupa mais espaço
em minhas veias que o sangue
eu supero meus medos
deixando tudo isso
em segredo
guardem isso

O ESCRITOR SEM FIBRA


não adianta
nunca conseguirei
ultrapassar os limites estipulados

alcançar o outro lado
onde a palavra guarda
tudo que é necessário
para tornar o silêncio um intruso

não conseguirei
contar a história sem os personagens
transportar o rio sem as margens

não adianta
minhas fibras estão
perpendiculares ao tempo
e ambos se encontram no infinito

SOMBRA DA CHUVA

as sombras
dos pingos da chuva
antes de atingir o solo
formam um estranho desenho
sobre a minha cabeça
ela não sabe onde começa
ela que eu falo
não sei se é a chuva
ou se é a cabeça
talvez as duas saibam
mas fazem questão
de me deixar assim
com essa dúvida

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

ALAMEDAS COM MARCAS

percorri as alamedas
por onde os suicidas caminhavam
minha alma não sentiu meu peso
ficou manchada em cada fala
pouco importa se estou diante do mundo
o que me enxerga não me trará o que faço
posso tudo quando me afasto
e se for puro o lugar onde moro
entupirei de memórias cada frasco
cada falso pensamento
meu corpo não cabe no espelho
sobra tudo mais que me invade
objetos de aço convertidos em sangue

AS TATUAGENS DE DEUS

imito os ateus
e colo tatuagens
nas costas de deus
de modo que ele não veja
de modo que ele não sinta
os desenhos formam
dúvidas incompletas
o corpo do caos
cujos fragmentos
não se tocam
deus nem se percebe
sem pele
quando os outros prisioneiros
o tocam

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

INALCANÇÁVEL

o céu está lindo
mas não consigo tocá-lo
assim como a morte
a solidão e a perfeição
e todas as coisas belas
são inalcançáveis

PALAVRAS COMIDAS

impressionou-me as palavras
deixadas sobre a mesa
soube após a ingestão
algumas engoli
outras bebi
depois de mastigadas
pareciam comidas
as palavras

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

ANTIGO

minha sombra
parece comigo
apenas tenho um pouco
mais de sangue
sou mais escuro
e mais antigo

APRAZ

tudo que me apraz
não cabe na minha cabeça
ela é maior que o mundo
nem é ela quem pensa
não penso caber no mundo
nem eu nem minha cabeça
o mundo não foi feito
para se caber
o mundo é um lugar descabido
cabemos quando sumimos

DEMOLIÇÃO

desemborcar o mundo
até cometer os segundos
antes de acordar o tempo
depois repetir a demolição
até o sol sobrar na mão

terça-feira, 3 de setembro de 2013

FALEMOS

falemos do mundo
da vida
falemos de mim
de alguém fora de mim
mas perto
de alguém dentro de mim
mas longe
falemos do que nos mantém atentos
dos adendos pendurados nas palavras
falemos sem marcar a boca
sem deixar o ruído
desmanchar o centro
poucos entendem
a caligrafia que o poema
tem por dentro
mesmo assim precisamos
continuar falando

GLOBO OCULAR

meu globo ocular
está perdido em alguma galáxia
ainda não sabem se é habitado ou não
ainda não sabem se existe água
meu globo ocular
nem sabe que está perdido
em alguma galáxia
enxerga esse mundo
de alguma posição
onde não me atrevo estar

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

SEM DOR

nunca mais
meu coração doeu
acho que ele
já morreu
ontem encontrei seus vestígios
entre papeis antigos
ocupava a parte
entre as palavras
e o silêncio
meu coração
transpira incêndios
queima o meu corpo
por dentro

OLHANDO PARA A LUA

não percas tempo
olhando para a lua
ela nem sabe
que existes
ela nem sabe
que é triste
ela não sabe de nada
não percas tempo
olhando para a rua
ela também
não sabe de nada
mas é onde cabe
os teus pés

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

O MELHOR POETA DO MUNDO

o melhor poeta do mundo
nunca usou gravata
aliás usar é um verbo pouco usado por ele
sentir seria mais preciso
o poeta sente que não sente muito
e passa
o melhor poeta do mundo
acha que o mundo não se acaba
nem daqui a vinte minutos
nem na próxima parada
o melhor poeta do mundo
não se acha
nem se encaixa nesse mundo
nem se acaba
o melhor poeta do mundo
não lê poemas
nem lê cartas
lê a mão do mundo decepada
o melhor poeta do mundo
não sabe que é o melhor poeta do mundo
pensa que escreve o que percebe
pensa que percebe o que se pede
pensa que o mundo o percebe
transpira a vida após a febre

MATINAL


do copo
os dentes me olham
não sei
se devo sorrir
ou morder

O AMOR NÃO DIZ

o amor não diz o que fazer
os fragmentos da razão
misturados aos fragmentos do teu corpo
não vão movimentar o vento
ficarão pendurados
se alcançarem as árvores
até que a morte
os transforme em frutos

BREVE INTERRUPÇÃO

essas palavras
como uma pequena interrupção
nas artérias do silêncio
um breve aneurisma
na ilusão
de que é possível
interromper o silêncio
com palavras

O QUE CARREGO AGORA

antigamente eu carregava
os sentimentos na sacola
não sei o que carrego agora

abandonei a sacola
antes que o tempo me pegasse
e me instalasse furos
ou me tornasse nulo

colhi o vento inacabado
varrendo tudo
que carrego agora

FESTA


então é preciso dançar
posicionar o corpo de maneira que
tudo se alimente
falar as coisas que não estão presas
prender o que ficou
entre a altura e a varanda
mostrar-se humano
esconder as asas sob o copo
falar o idioma
de quem ainda não aprendeu a falar

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

HOJE NÃO TEM POESIA

hoje não tem poesia
quem quiser que faça o seu corpo
quem quiser pise nas flores
quem quiser nem queira
hoje não tem poesia
as palavras fugiram
em desabalada correria
formaram esse pátio deitado
onde dorme a poesia

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

QUANDO O MEDO SORRI


o medo prende
o riso ao grito
o medo fixa
no local errado
na hora incerta
o medo grita
sem soltar sorrisos
o medo ri
ao se sentir preciso
o medo vem
em sentido contrário
ao que não tem

terça-feira, 27 de agosto de 2013

PALAVRAS EM SEGREDO

lembro do sopro
e das palavras soltas
fora dos livros
das estantes suspensas
e os músculos curvados
diante do vazio
a lembrança exagerada
do fio de cabelo no sono
separando o olho da fala

as palavras flutuavam
fora dos livros
sabiam do pior lugar
para se guardar
melhor permanecer em segredo
um palmo antes do medo
de se pronunciar

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

A PLANTA E O CONCRETO

nada está comigo
a não ser o
espaço tecido
entre a planta e o concreto
já fui vitrine
quando eu possuía pescoço
e parte do mundo pendurado
mostrava os meus sonhos
em pequenos vidros ligados
a uma outra maneira de dizer
e que agora me foge
e leva consigo o espaço

AMARELO

as cores do tempo
meus dentes amarelos
num sorriso amarelo
numa foto amarela
pendurada em qualquer espaço
entre o todo e um pedaço
a foto guarda a cor
ou adquire
mas não guarda o pensamento
expele
não lembro no que eu estava pensando
no momento da foto
a foto me lembra o lugar
e o lugar nunca vai me lembrar

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

ÁGUA

certas palavras
parecem que estão
derramando água
outras são
a água sendo derramada

DIANTE DA PALAVRA

comovido diante do abismo
parecia um abismo
era a palavra
comovido diante da palavra
como se estivesse
diante do abismo
atirou-se como se estivesse
contido numa arma
e a vida fosse o gatilho
atirou-se sobre a página
que não se abriu
diante do choque
misturou-se à pele
do espanto do outro
formou-se outro corpo

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

NO QUE ESTOU CONTIDO

estranho
o vidro
do caixão
embaçado
mas não grito
permaneço
aflito
e me
encolho
entre as flores
imagino
o transtorno
desfazer tudo
renascer
no cartório
adiar
o velório
transpiro mais
que respiro
logo
tudo
ficará
escuro
preciso
me
contentar
com o que me
cabe
administrar
o ar
e
o
espaço
afinal

fora
ou
aqui
dentro
signi
fica
o
mes
mo
mento

ESTRUME


quem destruiu o jardim
esqueceu de mim
não sou a melhor flor
a mais perfumada
nem a grama mais viscosa
não sou a erva daninha arrancada
sou o melhor estrume pisado
enquanto o jardim era extinto
mordi os pés do jardineiro
com meus gritos

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

SEGUNDA PESSOA

o suor do peixe
perdido no aquário

o suor da minha alma
perdido na entranha

minha alma nada
igual ao peixe
fora d'água

atravessa a superfície transparente
que nem sente

o suor da entranha
às vezes é lágrima
às vezes é palavra

PRIMEIRA PESSOA

ele parecia um anjo
o casaco com dois rasgos no dorso
o espaço das asas que não nasceram
rezava em voz alta
da altura que alcançava durante o voo
quem ainda escutou sua voz
durante a oração
a entendeu calma triste última
a mancha do sangue ao redor do corpo
tem a forma que a sua alma
gostaria de ter
se tivesse descido junto com ele
ficou sentada no parapeito da cobertura
dragando a altura em que ele foi se meter

PALAVRAS QUE VI ESCORRENDO

eu as vi escorrendo
as palavras que estavam penduradas
talvez nas páginas
talvez no pensamento de alguém
eu as vi escorrendo
e o modo como se movimentavam
parecia intruso
algo fora do entendimento
ou tão claro que os olhos não alcançavam
eu as vi escorrendo
sem haver uma superfície sob
soltas como se a terra
as expelisse durante um pesadelo
ou o céu as sugasse
antes de enxergá-las
eu as vi escorrendo
e não sei como fazer
para trazê-las até vocês

terça-feira, 20 de agosto de 2013

SERES DIFERENTES

teu sonho
de ser diferente
adormece sob o vão
teus costumes
formam um estranho volume
no chão
queres o que o tempo move
usando palavras como trilhos
porém ninguém se comove
tocas o teu corpo
ou teu corpo te alcança
algo restou entre ti e o sujeito
que carregas
mas não entendes o peso
teus pés deixam marcas
na superfície
de uma bolha de sabão

domingo, 18 de agosto de 2013

LADO

não sei
de qual lado do meu corpo
eu estou
se do lado de dentro
ou do lado de fora
quando me olho não me vejo
quando saio de mim
não me encontro
meu corpo
não precisa de mim
nem eu preciso de mim
sem o meu corpo

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

GRAVIDADE

tento caminhar
mais lento que o tempo
sempre perco
meu momento
tentando ser mais lento
o espaço dobra a minha pele
ao encontro do chão
meus ossos vão agarrar a terra
sem precisar das mãos
o tempo mantém
o corpo curvo
enquanto se espreguiça
mantenho a alma solta
enquanto me afogo
na areia movediça

ANTES DE DORMIR

antes de dormir
confiro tudo
a cabeça e a caspa
o cérebro e a loucura
os olhos míopes a serem remelados
o nariz obstruído e a coriza
a boca guardando as cáries e a língua corrompida
a garganta não sei agora estou calado
no peito o coração taquicárdico
os pulmões que se movem com dificuldade
o fígado doente não dói
o câncer do pâncreas ainda não sei
o intestino procura liberar gases mas se fecha
meu pinto não pia
o saco num plástico
as coxas rotas
os joelhos guardando todas as dores
os pés apontando para a rua
nada além disso é o meu corpo
é um corpo de outro sem o osso
objetos sem sentido e sem perigo
transforma o meu vazio
tudo que consigo
antes de dormir
planejo um sonho
mas nunca dá certo
nem fecho os olhos
e já estou desperto

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

TORRENCIAL

cair pesado
o corpo torrencial
furando a neve
provocando câimbras
nas costas da tarde
deixar-se ouvir
como se os gestos
fossem palavras
deixar-se ficar
inerte entre as breves
maneiras de calar
das mais leves
o rufar da poesia
tensionando o couro
da fala

EGOÍSMOS

somos todos egoístas
quando estamos tristes
choramos em segredo
queremos que a nossa pele
fique mais calma
transfundimos nosso sangue
para algum lugar desconhecido
trocamos o coração e o pulmão
por qualquer outro objeto
criamos outro mundo
do qual não fazemos parte
sentamos ao seu lado
e esperamos com ansiedade
o seu fim

CHUVA REPENTINA

um sol agudo
perde o rumo e desaba
entre as pedras
a chuva surge do nada
em seu auxilio
galinhas encolhidas
sob as mesas
esperam a chuva passar
de um lado para o outro
com o sol nas costas
seus pés afundam no chão
e em cada marca
o escuro da noite
vai se juntando
até formar outro dia

terça-feira, 13 de agosto de 2013

NO PRINCÍPIO

choro no princípio
mas ninguém sabe
onde começa
foi aqui foi ali
a lágrima não pensa
forma a cortina
que mantenho fechada
até formar a paisagem
que me enquadra

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

LIRA DOS VINTE ANOS


quando eu tinha vinte anos
eu era triste e não sabia
meu sorriso completo
chegava antes de mim
eu parecia inquebrável
o mundo não tinha fim
meu sangue era música
meu medo era areia
eu errava no alvo
acertava o acaso
eu tinha o chão como escada
tinha o céu como chapéu
sabia exatamente
a quantidade de estrelas
e como perdê-las
sabia de muitas coisas
principalmente as que eu inventei
inventei bancar a alegria
só que essa moeda eu ainda não sei


MÃOS TRÊMULAS

as minhas mãos tremem
mas não solto
seguro com a segurança possível
minhas mãos lembram as colinas
quando tremeram
não conseguiram segurar as palavras
a ideia contida no vento
a árdua faca de nuvem
não largo o que carrego
apesar das mãos trêmulas
nem é pesado
um feixe de luzes
parecendo apagadas
enterro nas curvas
até surgirem as palavras

DIA DOS TIOS

meu tio me ensinou
a pescar com o sol
a escuridão abriu a boca
e engoliu tudo
meu tio não me ensinou
a tatear no escuro
e o anzol atravessou a mão
até atingir o osso nulo
no escuro sem o peixe
meu tio me ensinou
a pescar errado
hoje sei pescar usando
o escuro como isca
embora com os ossos incompletos
a luz vai fisgando
até turvar a minha vista

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

LONGE DO CHÃO

a poesia me mantém
longe do chão
nem por isso
me imagino com asas
meu corpo suspenso
num voo provisório
não cruza o céu
está localizado
entre a cabeça
e o papel

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

MARGARIDAS


trabalham demais
os olhos ao redor do azul
fios incontidos de sombras
carregadas pelo branco
das pétalas das margaridas
simples corpos sem vestes
cujos sexos exalam
o mesmo que falam

CABOS

quase sempre
um cabo invade
a manga da minha camisa
um cabo de aço
um cabo de panela
um cabo de escada
um cabo de polícia
a manga da minha camisa
invadida pelos cabos
quase sempre
e comigo por dentro
sou suspenso
e invado um espaço
que não penso

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

VERTICAL

não importa
para onde você vá
qual o caminho
você escolhe para fugir
para onde suas pernas
vão te levar
não importa
no final
teu corpo horizontal
e o teu pé vertical
formarão um estranho desenho
outras pernas
vão te carregar
para um lugar
onde você nunca desejou chegar
se tiver sorte
os pés estarão cobertos
se tiver sorte
os pés estarão fixos ao corpo
se tiver sorte
chamarão isso de morte

ENTRE AS NUVENS

enregelado entre as brechas das nuvens
meu casaco despelado
minha queda aos poucos
primeiro o olhar depois o susto
por último algo parecido com o corpo
e a alma esticada cobrindo o céu
sentindo cócegas ao ser observada

terça-feira, 6 de agosto de 2013

COISAS PARA SE FAZER ANTES DO FIM

não posso fazer muitas coisas
pouquíssimas coisas posso fazer
não sei o que fazer
com este poema
mas antes do final
descobrirei o que fazer

CASA ABANDONADA

o poema
é a casa abandonada
pelo poeta
a palavra
aparente mobília
o silêncio
aparente alicerce
o poema
erguido sozinho
no meio da página
ausente de vila
ausente de rua
a casa abandonada
pelo poeta
espera que alguém
a invada
e imagine
ser sua

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

ENCAIXOTADO

irremediável
o olho abre
e o mundo permanece
imóvel à sua frente
com a caixa aberta
de guardar as horas
e outra caixa
onde você se encaixa
não agora
mas vai saber na hora
em que o mundo
for embora
e só ficar a caixa

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

CRAVO DAS MOSCAS


o cravo das moscas
mora no anteparo
entre o prego e a praga
entre o ouro e a prata
sem a pele um valor
com a pele bolor
o cravo das moscas
enfeita pela metade
perfuma sem vontade
não murcha de verdade
o cravo das moscas
dorme onde invade
seu sono é de marte
seu sonho é de morte

LUGARES

I

lugares onde nunca
imaginou estar
no meio do poema
por exemplo
sua presença
e depois o silêncio
para sempre



II

no meio da chuva
em dezembro
flor que se passa
por gente e
caminha
pétala colada
ao corpo


III

entre dois blocos
de gelo
uma chama equivocada
ascende aos céus
em novelos
amarra a natureza
aos abismos

CANTARES E FINGIMENTO

finjo ser
um entendedor de poesia
e vou preenchendo o dia
com palavras
passarinho não entende de música
e vai preenchendo o dia
com seu canto
é da natureza do passarinho cantar
é da minha natureza fingir

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

COMOVENTE

sob as flores
não me comovo
nem me movo
olho
como vendo
o que é visto
não me comovo
diante das flores
retiro o necessário
a palavra sem cor
sem perfume
a palavra
que não me comove

DOR

vai doer
não há escapatória
deixe a dor inundar
por dentro
até transbordar
assim você
ficará por dentro da dor
e começará a encher
até transbordar

quarta-feira, 31 de julho de 2013

SEM AS PERNAS

não sinto as minhas pernas
nem meu coração
não sinto minhas mãos
quando as estendo em direção à vida
não sinto ainda
o que deveria sentir
segundo alguns
eu deveria estar sentindo algo
ao ver o que tudo sente a me ver
não sinto que me veem
nem sinto que me enxergam
estou desaparecido de sentido

ENQUANTO O FERIADO NÃO ACABA

o corpo grampeado no céu
a alma amarrada a uma cadeira na escada rolante
de uma loja de departamentos num feriado
o corpo chove aos poucos
quando encontra nuvens
quando não encontra apenas sangra
pelos ferimentos causados pelos grampos
a alma amarrada a uma cadeira na escada rolante
entra pela fresta e dá a volta por dentro do mecanismo
e volta ao alto e desce até entrar novamente na fresta
em algum momento a alma vai ficar tonta
em algum momento o corpo entrará em choque
até que o feriado acabe a alma vai encontrar o corpo
num estado lamentável
talvez dê tempo de fazer alguma coisa
talvez não dê tempo de fazer nada

terça-feira, 30 de julho de 2013

CARREGO

carregamos tantas coisas
e ainda deixamos algumas
outras vamos adquirindo
tantas coisas nos carregam
algumas nos deixam pelo caminho
outras vão nos adquirindo
minhas botas gastas
meus dentes escovados
meus curativos de poemas
meus intestinos amarrados
minhas perdas preciosas
minhas costas
minhas bostas dissecadas
o ar dos meus pulmões
preso nas palavras

segunda-feira, 29 de julho de 2013

ONDE CABE A POESIA

fiquei assim
entre uma poesia doida
ou uma poesia doída
metade do que eu sinto
cabe num automóvel
de portas abertas
a outra metade
é a cidade
onde o automóvel
não cabe

MASTIGANDO RELÂMPAGOS

eu lembrava de sorrir
quando mastigava relâmpagos
da altura em que eu me encontrava
com o rio eu me encontrava
eu nem era tanto
o rio desembocava em mim
aos poucos fui me tornando esse oceano
aos poucos fui desaprendendo a ter um fim

sexta-feira, 26 de julho de 2013

USO DA MUCOSA

a vida pinga lenta
na minha mucosa
o resto me expulsa
pareço com algo
quando me adestro
quase um estrume
não há essa música
que imaginas
ouça-me
alguém pendura o tempo lá fora
e nos usa como gancho

MUITO

muito vento na minha cara
muita água na minha boca
muito calor para o meu corpo
muitos caminhos para as minhas pernas
muito silêncio para a minha cabeça
muitas paisagens para os meus olhos
muita poesia para os meus dedos

quinta-feira, 25 de julho de 2013

METÁFORA

a metáfora da vida é a morte
disse isso
enquanto caminhava sobre os trilhos
não com os pés
com o trem por dentro

NINGUÉM VAI LER ESTA MERDA

ninguém vai ler esta merda
então pouco importa a sua forma
se vai ser clara e dura
ou se vai ser mole e escura
nada disso importa
se vai ocupar todo o espaço
ou só um pedaço
se vai fazer barulho
durante o mergulho
ou se vai cair sem alarde
se vai pesar ou ser leve
se vai demorar ou ser breve
se ao vê-la ficarão espantados
ou ficarão encantados
se vai provocar uma guerra
ou a paz na terra
nada disso importa
se vai ser fedorenta
daquelas que ninguém aguenta
ou se vai passar impune
talvez até com algum perfume
que sabor deverá ter
se algum louco cismar de comer
nada disso importa
se ninguém vai ler esta merda
a resposta mais certa
é que seu objetivo foi alcançado
ao deixar esse papel melado

NOVO ÂNGULO DE VISÃO PARA A QUEDA

a mão abaixo do nível da queda
esperando o corpo
o coração chove a cântaros
pouca pele para tantos guarda-chuvas
a rua tritura mansamente o que passa
sombras sem pés ou sem graças
emborca o lago em botões que ainda
nem amanheceram
é difícil permanecer curvo
há o silêncio e a casca aos pedaços
apertando tudo como se movesse
melhor permanecer frio mesmo atento
não se desfaça do vento
mantenha-o contido entre as perdas

quarta-feira, 24 de julho de 2013

ABRINDO JANELAS


escrevo para abrir janelas
se ainda estás no escuro
é porque ainda não terminei

DEVERIA SER UM POEMA

eu deveria escrever um poema
mas falta paixão
cansei de procurar meu coração
e quem encontrá-lo
darei meu abismo como recompensa
o que bate em meu peito
é o eco de algo
que se move longe muito longe
onde também eu devo
ter me perdido
e quem me encontrar
darei meu silêncio como recompensa

terça-feira, 23 de julho de 2013

PAISAGEM INCLINADA

pensei que a
paisagem inclinada
derramaria
mas foi só impressão
derramou
sem a inclinação

EMPAREDADOS


“...cada palavra
é vã é vão aborto eterno
é céu aberto de infernos
o que por dentro se come
por fora a faca afia a fome”

G.Vieira



as paredes do inferno
são formadas por palavras
o idioma do inferno
é a poesia
o tempo do inferno
é um dia
o surdo mudo do inferno
é um poliglota
a saída do inferno
é uma rota
para um passado
formado do eterno
alicerce de silêncios

INTERROGAÇÕES

incapaz de saber
os motivos de uma pergunta
curvo as palavras
até formar interrogações
e depois delas
o silêncio mais importante
que as respostas

segunda-feira, 22 de julho de 2013

CORPO IMAGINÁRIO

meu coração
não me quer por perto
prefere morar no deserto
ao lado do mar apagado
o sal do mar lambe o sol
que cospe miragens
sobre a paisagem
meu coração se imagina
um ovário
e bombeia afetos
para o meu corpo imaginário


DIA FALSO

não sei como
esconder um dia falso
me esconder do dia
soaria falso
escondo
falsamente o dia
escondendo-me
no dia falso
ou escondo
a falsidade do dia
nesse jogo falso
de palavras

sexta-feira, 19 de julho de 2013

ALEGRIAS


a alegria interrompe
determinados ritos
choro quando fico longe
de tudo que imagino
a alegria do outro me interrompe
meu choro pendurado na parede
sob o pincel de algum
trabalhador distraído
a alegria do outro é ofensiva
não admite sonhos
fica-se alegre por algo real
algo que caiba num dedal
a alegria do outro é distante
roça a minha pele
mas não deixa marcas
aprisiono o meu choro
entre palavras

IDEIA


a palavra começa
onde o mundo acaba
começo o silêncio


O DIA EM QUE A CASA DESABOU


a casa na beira do rio
o barro brigando com a unha e a água
o barro na boca e na boca do rio
o desmaio da casa
o banho de barro e de rio
a mudança
o novo bairro
a casa nova ainda mais apertada
a unha no barro
o rio longe

quinta-feira, 18 de julho de 2013

OUÇO BATER

batem no
meu coração
até sair
sangue cobre o corpo
igual quando se apanha
a folha morta
coberta de palavras
ainda presa
à arvore até
quem sabe
quando

OS SONS QUE AINDA RESTAM

ainda ouço
o barulho das esquinas
que se desdobravam
nossas sombras juntas
apenas as sombras
não sabiam que era aborto
o caminho que seguíamos
em direção ao som
pendurado entre as ramagens
era uma fruta
parecia uma metáfora
sem palavras
seu cheiro nos embriagou
nossa alucinação
nos devolveu aos esgotos


quarta-feira, 17 de julho de 2013

PELO SUBMERSO

sobre o polo
empalho a praia
disseco a água
com a calha
formada pela fala
formo artérias
externas
usando idéias
ao couro raro
do incêndio
costuro silêncios

OXIGÊNIO



o poema
com dificuldades
de respirar
precisa de palavras
para oxigenar
estas não são
as corretas
sugiro outras
talvez essas

quinta-feira, 11 de julho de 2013

PRECIOSO

porque a poesia
precisa de um melhor tratamento
como se estivesse doente
de uma melhor abordagem
como se fosse um barco
de melhores poetas
como se estivessem separados
de lirismo
como se a vida permitisse
de entendimento
como se fosse fácil
de um melhor reconhecimento
como se tivesse face
porque dizer que a poesia precisa
é imaginar que ela sente falta
a poesia é farta
de tantas necessidades
que nem nota
de tantas ambiguidades
que alguém anota

UM LUGAR

procuro um lugar
onde o sol não bata
quando o carro fizer a curva
que a chuva não me encontre
quando abrirem-se as fendas
procuro um lugar
onde eu possa me deixar
sem que eu mesmo me encontre
e fique por lá escondido
para sempre
ser visto
como algo maior que o lugar
que encontrou para ficar

TEIA DE ARANHA

li num almanaque
que uma aranha
gasta em média
vinte a trinta minutos
tecendo uma teia
gasto menos que isso
escrevendo um poema
ou destruindo uma teia

TROTE

não sou amigo do rei
nem da rainha
muito menos do bispo
talvez algum dia
eu me torne amigo do cavalo
se ele entender
o quanto é solitário
cavalgar por esses sons
que parecem palavras
e que insistem
em me pisotear
como se eu fosse
uma página

quarta-feira, 10 de julho de 2013

INTERNO

o muro que me cerca
é mais moderno
que o meu terno
há uma fenda
onde uma planta baixa
sobressai
há lodo mais verde
que a minha caveira
há uma árvore encostada
como se espreguiçasse
mas está apenas se trocando
meu terno é de madeira
de resto de caixa de feira
lodo ainda vai nascer
e das fendas sairão
uns vermes que as pessoas
confundem com a alma
e nenhuma árvore
vai alcançar

ALCANCE

não alcanço o interno
o inferno não alcanço
não me alcanço
não me lanço
não alcanço o ranço
não avanço
não alcanço o externo
não alcanço onde danço
onde me lanço
não me alcanço
meu tamanho
nem meu sonho
alcançam nada
além de mim

terça-feira, 9 de julho de 2013

A MELHOR PARTE

este poema
não é mais operável
está aberto
e não há como fechá-lo
inútil entubá-lo
ou encaminhá-lo para a terapia intensiva
em breve se espatifará
em vários pedaços
e ninguém vai ficar
com a melhor parte

QUASE NADA

a chuva grampeada no céu
arranha com a cauda quase nada
igual ao tigre
se houvesse tigre entre o sol e a calçada
poças de vento incluem as cores
as dores que esqueci pelo caminho
nem sei qual caminho
se estive sempre aqui
e aqui permaneço imóvel
as dores me grampeiam na paisagem
igual a chuva
molho por dentro o pensamento
até me mostrar

DE VEZ EM QUANDO A MORTE

poucas coisas fazem com que eu me importe
a maioria acho
poucas coisas em que eu acredite
quase nenhuma
viver quase entre uma vírgula
e outra
talvez um ponto e vírgula
frase final
alguém tão jovem quanto eu
há de me achar um pouco perdido
a incerteza no meu olho e no passo
vejo e caminho
como quem vive de vez em quando
eu sei eu sei
e demonstro morrendo
de vez em quando

segunda-feira, 8 de julho de 2013

A ALMA DA PÁGINA

minha alma não me entende
primeiro ela não sabe onde estou
e eu também não sei onde ela está
a alma e o corpo
o poema e a página
a página não entende o poema
o poema não sabe onde a página está
e a página também não sabe onde está o poema
o poema e a página
a alma e o corpo
nem toda alma tem corpo
nem todo poema tem página

sexta-feira, 5 de julho de 2013

SENTIMENTAL

pelo que estou sentindo
devo estar sentimental
a lágrima do outro não toco
o coração do outro um estranho
o que o outro sente desconheço
por que as folhas tremem
por que os vales valem
por que não há romantismo urbano
tudo isso e quase nada
não sinto como deveria
devo estar sentimental
procuro um papel onde caibam palavras
só consigo um poema

MAR DE TÉDIO

o tédio demarca a tarde
com a sua urina
tem cheiro imóvel
e cor opaca
caminho com a urina na altura dos joelhos
mergulho sem equipamento
deixo que os meus pulmões
terminem o trabalho

quinta-feira, 4 de julho de 2013

INDEPENDENTE DA FELICIDADE

não me importo
com a cor do automóvel que me atropele
ou que me leve
para onde eu queira chegar
ou para onde queiram me levar
não me importo
como a cor dos olhos que me olham
ou que se fecham
para não me ver passar
não me importo
se alguns querem a felicidade
em algum momento
sei que alguém vai conseguir
aparentemente é somente isso
que almejam
a tal felicidade
esquecem que nem sempre
o corpo obedece ao que desejam
e expulsam a alma
por qualquer um desses buracos
que carregamos
e utilizamos para expelir
secreções emoções idéias
independentes de sermos felizes
ou não

SOBRE O SILÊNCIO

não existe pensamento calado
o silêncio não habita o pensamento
os surdos escutam o que estão pensando
e fazem barulho com os gestos
assim o poema pensado
transforma palavras em gestos
os cegos entendem o barulho das palavras
enxergam o silêncio que elas carregam

quarta-feira, 3 de julho de 2013

ESCREVENDO SOZINHO

de vez em quando me pego
falando sozinho
mas não escuto
ou finjo não escutar
são palavras
que eu não gostaria de ouvir
mas gostaria de falar
de vez em quando me pego
escrevendo sozinho
mas não leio
ou finjo não ler
são palavras
que eu não gostaria de escrever
mas gostaria de ler

MOFO

estava o mundo
a paisagem guardada no mundo
e eu me senti
como se tivesse sobrado
guardado ao lado
esperando o mofo

terça-feira, 2 de julho de 2013

CHAPÉU DA INFÂNCIA

quando criança
eu tinha um chapéu
pesava
parecia de pedra
naquela época eu não pensava
e aquele peso na cabeça
era um alívio
permitia ao meu corpo
fazer coisas sem pensar
mover-se por exemplo
principalmente para traz
surpreendendo os abismos
desmanchando montanhas
antes do sopro
eu não sabia do meu corpo
em nenhum momento
meu corpo era muitos
onipresente no tempo
as lembranças do chapéu da infância
me mantém na ignorância

segunda-feira, 1 de julho de 2013

FLUTUANDO NA NUVEM

deitado descanso os meus pés
descansaria melhor
flutuando na nuvem
deitado num hiato horizontal
que empurra o meu corpo
contra um espaço que preciso
descanso apenas os pés
o corpo alvoroço
flutuando na nuvem
sonho sem precisar dormir

SANGUE DA MORTE

morte também é sangue
a cor do sangue
é um segredo
revela-se apenas ao morto
quando se posta
diante do espelho

sexta-feira, 28 de junho de 2013

TRISTEZA LINDA

uma tristeza linda
e um espanto
moldaram a calçada
embora nua
o rosto emparedado no muro
os ossos no murro
por onde navegava
tudo era lágrima
fisgava rancores que tremulavam
pensando que eram peixes
para onde vai essa água salgada
para onde o mar não sabe

CRESCIMENTO

quando eu crescer
não vou ficar do meu tamanho
vou ficar do tamanho do estranho
que mora em mim e desconheço
serei mais estranho
do que eu mesmo
enquanto cresço

quinta-feira, 27 de junho de 2013

O QUE A CHUVA MUDA

a chuva mura
o impossível
mãos afagam o barro
tentando moldar uma vida
sobras espalham-se
sombras empalham-se
a chuva muda
pedras do lugar
não a água

PACÍFICO

quando eu carregava bandeiras
eu era calmo
até que me arrancaram os braços
quando eu gritava
eu era tranquilo
até que me arrancaram a língua
quando eu corria de encontro às barricadas
eu era sossegado
até que me arrancaram as pernas
agora sou apenas um tronco
boiando no oceano pacífico


MULTIDÃO

meu rosto se perde na multidão
minhas palavras não
elas são a multidão
na qual os rostos se perdem

quarta-feira, 26 de junho de 2013

NINGUÉM ME AVISOU QUE EU ESCREVERIA ASSIM

ninguém me avisou que sangraria
se eu soubesse
teria começado mais cedo
descobriria palavras nas pedras
nos fios de cabelos do tempo
teria prestado mais atenção
quando o silêncio fazia a curva
e derrubava a angústia bifurcada
ninguém me avisou que doeria
se eu soubesse
nunca teria interrompido
faria poemas sem fim
principalmente
quando eu não estivesse presente
teria me postado
de maneira que meu corpo
não fosse notado
espalharia minha alma
por todos os cantos
seria a melhor música silenciada
ninguém me avisou que eu sofreria
se eu soubesse
teria murchado com mais força
teria mostrado a madrugada
que cobria a minha entranha
teria me iludido com mais facilidade
teria sido o primeiro a arrancar
os dentes da felicidade
ninguém me avisou
que tudo terminaria assim
ninguém me disse
que a dor nunca teria fim
ninguém me encaixou no precipício
ficaram frouxos meus nervos
meus medos
meu modo de esquecer o princípio
ficaram frouxas as palavras

LAGOA SECA

depois que a lagoa secou
apenas lembraram o barco encalhado
esqueceram das árvores
que não mais refletiriam
esqueceram da sede
que não mais se espreguiçaria
esqueceram que as escamas dos peixes
tornam-se estrelas
esqueceram da água
que os observava
enquanto sobrevoava

terça-feira, 25 de junho de 2013

TUDO QUE QUEREMOS

o que queremos conseguir
não tem pele
não há como contar
sem pedaços
o que completa
ficar fora do possível som
da necessária luz
da contraditória dor
não há como cantar
sem saber ouvir

SEM OS CORPOS

acordamos
levantamos e seguimos
muitos não conseguem acordar
e mesmo deitados seguem
para algum lugar
escondemos os seus corpos
ou queimamos
para onde eles foram
não precisam de corpos
para sonhar

segunda-feira, 24 de junho de 2013

TAMANHO DO PENSAMENTO

meu pensamento
durante a morte
ficará comigo
como fica comigo
meu pensamento
durante o gozo
a grande morte
a pequena morte
e os pensamentos
do mesmo tamanho

O AMOR

o amor é duro
depois é água
depois evapora
o amor é nuvem
depois dissipa
ou chove
o amor molha a terra
o amor é lama
depois seca
e racha


sexta-feira, 21 de junho de 2013

POEMA PARA SER TRADUZIDO

pode parecer estranho no início
mas depois você se acostuma
estamos falando o mesmo idioma
isso já é um bom começo
talvez surjam problemas em outra língua
se é que alguém vai traduzir isso
como eu falei no início
parecerá estranho
mas depois da oitava linha
você vai começar a entender
exatamente o que eu quero dizer
afinal falamos o mesmo idioma
melhor começo impossível
e se estivesse escrito em outro idioma
ainda seria traduzível
sei que pode parecer estranho
mas com o decorrer da leitura
você vai entender o que estou dizendo
como eu já falei no início
e repeti no meio

es mag zunächst seltsam
aber dann bekommst du benutzt
wir sprechen die gleiche sprache
dies ist bereits ein guter anfang
probleme können entstehen in einer anderen sprache
wenn jemand geht um es zu übersetzen
wie ich schon sagte am anfang
es mag seltsam erscheinen
aber nach der achten zeile
sie beginnen zu verstehen
genau das was ich meine
immerhin sprechen die gleiche sprache
best start unmöglich
und wenn es in einer anderen sprache geschrieben
würde noch übersetzbar
ich weiß, es mag seltsam erscheinen
aber im laufe des lesens
sie werden verstehen was ich sage
wie ich schon sagte am anfang
und wiederholen der mitte

quinta-feira, 20 de junho de 2013

ADMINISTRANDO SAUDADES

administro a saudade
de acordo com o tempo
dois minutos aqui
meia hora ali
alguns dias meses
à falta de alguém me refaço
depois administro o espaço

MINHA FALTA

às vezes sinto a minha falta
em que parte da casa ou da rua
fiquei escondido de mim
em que parte da vida me perdi
em que parte da luz me apaguei
em que parte do mundo me deixei
onde me larguei
onde me misturei aos detritos
ao lixo
onde permaneci fixo
ou segui em frente
sempre sem mim
onde me encontrarei
se por acaso eu me encontrar
e me reconhecer
neste momento
sentirei mais a minha falta
quando me desconhecer

quarta-feira, 19 de junho de 2013

VARAIS

ciclistas alongam-se em torno das rodas
cuspes disparam pelas laterais
uma chuva miúda disfarçada de pessoas
treme como se estivesse despida
roupas varam os varais
e eles que não são bobos
transmitem a energia necessária para o vento

terça-feira, 18 de junho de 2013

BURACOS

a boca é um buraco
que ainda não sei utilizar
comer chupar morder falar
beber sorrir gritar calar
isso não quer dizer que sei utilizar
tenho outros buracos
que utilizam outros verbos
e também não sei utilizar
ligar o verbo ao buraco
não é o mesmo que acioná-los
buracos não são verbos
nem verbos abrem buracos
nem conseguem fechá-los
eu tenho muitos buracos
e outros que ainda serão abertos
buracos são apenas buracos
nem errados nem certos

CENAS DE GUERRA

cenas de guerra
o termo usado
falaram e repetiram
eu vejo sempre cenas de guerra
quando atravesso a favela
para encontrar um ser humano
quando entro na fila
para exercer o meu direito de ir e vir
dentro de um veiculo
denominado coletivo
vejo cenas de guerra
quando adoeço e procuro um médico
no meio da multidão
vejo cenas de guerra
durante a seca no sertão
sentado à sombra das parreiras
de uma propriedade vizinha
vejo cenas de guerra
nos sinais nas esquinas
na porta da minha casa
vejo cenas de guerra
falo e repito

MOMENTO SOZINHO

a poesia é o meu
momento sozinho
depois saio
e este é o momento
dela sozinha
exposta
como um nervo
de uma folha
que parecia unida
ao corpo à pagina
e agora
sob o olhar do mundo
parece acompanhada
e na verdade está
acompanhada da morte
da minha presença

segunda-feira, 17 de junho de 2013

NAFTALINAS

minhas inclinações suicidas
não me permitem pulsos
baratas não comem a minha felicidade
ela estava guardada na gaveta
entre venenos e naftalinas
a gaveta perdeu-se entre os móveis
que queimei no último incêndio
eu era as labaredas



ONDE A POESIA ACABA

brinco
onde a poesia acaba
enfeito de silêncios meus cabelos
minha cabeça inflada e seus frutos
perdida entre as pedras do muro
a primavera emparedada
perfuma os escuros que carrego
minhas mãos amassam as luzes
aos poucos amoldam o que não pode clarear
algum lugar
depois que a poesia acabar

AO VER MEU CORPO

inauguro a carne
com o sangue
antes não soubesse
ignorante ao corte
pudesse transformar
o que não posso
e retornar ao óbvio
osso nervo envoltório
de algo que se move
sem nenhum motivo
algo que está vivo
só porque é visto

sexta-feira, 14 de junho de 2013

PORTOS

diante do aeroporto
não me importo
se os aviões vão pousar
não me importo
para onde vão os trens
de onde os carros vêm
onde os homens estão
para que servem os compartimentos
onde ficamos guardados
depois dessa vida
não me importo
se os navios não afundam
quando estamos caminhando sobre as águas
não me importo
com as portas
que se abrem quando não precisamos
não me importo
com os pés que nos carregam
para um lugar
que nunca pensamos
não me importo
se no final todos morrem
ter para onde ir
é o que menos importa

quinta-feira, 13 de junho de 2013

CONVIVÊNCIAS

eu continuo nervo
tu continuas dor

BENGALA

é sempre bom
manter uma bengala em casa
nunca se sabe
quando uma perna vai ser perdida
outro dia
de tanto olhar uma paisagem
perdi o olho
ele se transformou
no que eu sentia ao ver a paisagem
implantou-se na minha cabeça
que de tanto pensar no sentimento
terminei perdendo a cabeça
ela se espalhou pelo meu corpo
de tal maneira
que ele não aguentou
meu corpo se tornou o mundo
restaram essas palavras

quarta-feira, 12 de junho de 2013

A LETRA QUE ME FALTA

triste diante de palavras
de difícil entendimento
mas comoventes
sento ao pé do silêncio
mastigo folhas
mesmo as sem palavras
meu coração diz que sou mudo
meu coração fala mais do que eu
vou morrer e ele vai continuar
batendo essa mesma tecla
essa letra que sempre escapa
da palavra exata
essa letra que me falta

CAMINHOS

cobra não escolhe o caminho
nem o passarinho
piso da mata
chão do zoológico
galho de árvore
pau da gaiola
ninguém escolhe o caminho
parque
escritório
hospício
cadeia
ninguém escolhe

FORMA DA ÁGUA

a novidade da água
é pouco sabida
bebê-la vertê-la retê-la
e não vai sobrar nenhum rito
talvez se fosse líquida
coubesse num poema
mesmo sem fundo
transformaria o silêncio
em paredes

terça-feira, 11 de junho de 2013

AS ÁRVORES CAEM

não escolhemos as árvores
que vão cair
elas caem simplesmente
caem sobre as casas
os automóveis
caem sobre as pessoas
caem dos poemas
caem das janelas
caem caem
deixam no rastro
um buraco
suas raízes estranhas
e cansadas
suores de terra e escuridão
logo preenchido
por outra árvore
não escolhemos as árvores
como também não nos escolhem
simplesmente caímos
e deixamos buracos
que nunca mais
serão preenchidos

ASCENSÃO E QUEDA

o amor ascende
mais que a mão
o braço
do náufrago
mostra-se
todo o corpo
só que já está morto

segunda-feira, 10 de junho de 2013

BANCO DE DADOS

meu saco escrotal e eu
sabemos que os netos
dos meus netos
não vão se lembrar de mim
não se penduram mais retratos
na parede
nem se penduram pessoas
nas lembranças
o tempo interrompido nas fotos
tornam-se dados
guardado no banco de dados
guardado nos dados
lançados pelo tempo
noutros bancos de dados

sexta-feira, 7 de junho de 2013

SORRISO E ARDÓSIA

meu sorriso e o assombro
não havia motivos
assim como as folhas de ardósia
formavam as fileiras enlouquecidas
meu sorriso enfileirado aos outros
formava um estranho desenho
meu assombro tomou corpo
sem um coração no centro
espero o retorno de quem o carregou

O LADO DA VIDA


acordar
e não saber
de que lado da vida
devo estar
o lado certo da vida
o lado errado
o lado direito
o lado alagado
o lado seco
o lado lotado
de que lado da vida
devo estar
se ela está ao meu lado
deveria bastar
para saber se a vida está
ao meu lado
para que lado
devo acordar
acordo do lado certo
do lado errado
do lado onde
eu nem seja notado
pela vida
quem nem sabe
que está ao meu lado

quinta-feira, 6 de junho de 2013

ESPERO A NATUREZA PASSAR


uso o sol
como um cantil
a luz molhando a minha camisa
descanso à sombra dos prédios
espero a natureza passar
sobre o meu corpo
em vão
aos poucos me incorporo ao tráfego
escarro carros
excreto aços
estoco corações nos alforjes
quem sabe algum um dia
encontrarei os homens

SUPERFÍCIE POROSA

as palavras líquidas
sobre a superfície porosa
da poesia
aos poucos vão se esvaind

COMO SE FAZ UM POETA

no dizer antes
faz-se o poeta
antes da palavra
antes do silêncio
antes desse espaço entre eles
antes de hoje
antes de agora

REBORDADO

rebordo imerso
em conforto
linha que escapa
dos dedos
agulhas apontam
caminhos
largo esse tecido
em que me escapo
escalo o fim
entre mim e o acaso

terça-feira, 4 de junho de 2013

SOBRE O ENTENDIMENTO


namoro as árvores
espero algum dia
ser expelido por elas
num outono serei alguma folha
sem que ninguém entenda
porque não ser uma flor na primavera
entendimento requer alma
coisa que não tenho
desista de entender as pessoas
passarinho voa
porque não é otário

RIGOR MORTIS

um poema não morre
seu corpo inerte
sob o olhar entristecido
é apenas a melhor maneira
de mostrar nunca ter existido

segunda-feira, 3 de junho de 2013

FURO

mais fácil furar um couro
um objeto pontiagudo e força
furar o silêncio
não requer objetos nem força
nem sempre o som fura o silêncio
nem uma palavra escrita
é difícil furar o silêncio
antes de tudo
é preciso encontrá-lo
limitar o local a ser furado
encontrar o objeto exato
e utilizá-lo
e depois ter um lugar onde guardar
tudo que o silêncio vai derramar

DEMOCRACIA

fale
desde que o outro não escute
faça
desde que o outro não veja
ouça
desde que o outro não fale
seja
desde que o outro não saiba
veja
desde que o outro não mostre
mostre
desde que o outro não veja
sofra
desde que o outro não sinta
morra
desde que o outro não saiba

sexta-feira, 31 de maio de 2013

MORRER POR AQUI

ninguém quer
morrer por ali
prefere por cá
um lugar
onde a alma
pensa existir
ninguém quer
morrer por aqui
prefere por lá
em algum lugar
onde o corpo
não precisa
existir

quinta-feira, 30 de maio de 2013

DIMINUINDO A PAISAGEM

os sentimentos que me viam
cavaram minha ausência
como se arrancando a minha pele
diminuísse a paisagem
dentro do saco de músculos
os ossos provocam um barulho ensurdecedor
talvez por isso o mundo nunca durma
e deixe para mim
todos os seus sonhos

CORPOS TRISTES

o movimento no quadro
não mostra o momento
em que arrancaram os pregos
há o sangue as chagas
a dor estampada
permaneço mudo
gesticulo palavras
evito movimentos bruscos da boca
cuspo os pregos antes de sorrir

terça-feira, 28 de maio de 2013

FICHA DENTÁRIA

na minha ficha dentária
não constam sorrisos
talvez por isso
meus dentes flutuem
em cada pingo da chuva
repousam no meio-fio
como os ossos de um cão
que ao se coçar
provoca tremores no inverno
na minha ficha dentária
não constam mordidas
talvez por isso
minha fome escape
das chaminés das olarias
formando desenhos exatos
ao repousar entre
as árvores que o barro
forma ao se tocar

CAMARIM


o sol retocou a maquiagem
diante da poça
retirou-se
agora a noite

O TEMPO ROMPEU A MANHÃ

como se não houvesse
nenhuma ligação com o vento
o tempo rompeu a manhã
com o melhor do seu rosto

o olho
pendurado no centro de tudo
como se enxergasse
guiou o dia até onde
parecia o final

segunda-feira, 27 de maio de 2013

ONDAS AMARELAS

o céu
mais leve que o mar
reflete o azul
mais que o ar
engole ondas amarelas
que ninguém
consegue enxergar

sexta-feira, 24 de maio de 2013

RECEPTADOR

o poeta
é um receptador de silêncios
paga qualquer preço
paga inclusive
em poemas

PROCURAREI SORRIR

procurarei sorrir quando vierem
talvez amenize a minha culpa
não importa o modo
tenho certeza que será doloroso
mesmo assim permanecerei sorrindo
assim os loucos recebem as dores
regam flores imaginárias no vaso sanitário
adotam pássaros bordados
entre o olhar e as nuvens
procurarei sorrir mesmo que não cheguem
nunca se sabe quando transferem nossos ossos
sabemos da direção do vento
pelo modo como nossa pele se move no varal
pelo medo que nos move
procurarei sorrir

A CHUVA

a morte é como uma chuva
que nos surpreende
antes que alcancemos os abrigos
e mesmo que tentemos correr
nossos pés estarão presos na lama
e as nossas roupas
mesmo encharcadas
não colarão em nossos corpos

quinta-feira, 23 de maio de 2013

ABORRECIMENTOS

o mundo tem me aborrecido fácil
talvez eu deva cortar os cabelos
entre as alamedas sob o sol
misturado às folhas
parecerei agasalhado
minhas asas sob o terno
empurrando meu pulmão
contra as palavras
todas elas inúteis
como os aborrecimentos
que guardo nos bolsos
palavras aborrecimentos
as sombras dos pássaros
sobre a minha cabeça
tudo ao meu redor
parece uma grande brincadeira
mas só me permitem ser criança
se eu for morar num hospício
prefiro fingir que sou adulto
criando meu hospício de palavras

PAISAGENS MOVEDIÇAS

às vezes as paisagens movem-se
como se os meus olhos estivessem caindo
e ao caminhar eu tropeçasse neles
e os chutasse para bem mais perto das paisagens
e sentisse que as pontas dos meus pés
buscassem fazer parte de alguma paisagem
fora do alcance dos meus olhos

FLORES NO DESERTO

dizem que os poetas
enxergam flores num deserto
antes que as nuvens formem homens
antes que o suor sufoque o mar
antes que o ar procure luz
antes que a areia alague as sombras
eu não enxergo flores no deserto
meus olhos vivem mortos na poesia
meu corpo foge
quando a alma está por perto

quarta-feira, 22 de maio de 2013

A POESIA NÃO SERVE PARA NADA (RECITATIVO)

não se preocupe
mesmo sem certeza vai ser assim
não pense que pensar vai mudar alguma coisa
não pense
não se iluda com a curva do relógio
o tempo tem um ponto bem no meio

não se preocupe
continue administrando os ossos sob a tua pele
administre o sangue sob a tua pele
enquanto isso alguém adestra a tua alma
e o coração é apenas um músculo
que te ensina a pensar em segredo

a poesia não serve pra nada
a poesia não apaga incêndios
não grita quando está ferida
não sabe os gestos das árvores
não ergue homens nem afaga
a poesia não aparece nem quando o silêncio cresce
a poesia deveria estar aqui
mas só restaram as palavras

terça-feira, 21 de maio de 2013

REVERBERADA FONTE


fonte
a areia que cresce
até formar um monte
uso água na escalada
o mundo não desce
quase nada
o suficiente para mostrar-se
estranho
no cume como o ar
do meu tamanho

MINHA TESTA

minha testa
paralela ao sol
forma uma sombra
no meu pensamento
havia um poema lá dentro
agora está preso na página
amordaçado por outra página
pensamento quando for lido
outro momento de entendimento
outra maneira de tornar-se lento
minha testa
pendurada na cabeça
forma uma fresta
por onde o mundo se esvai

DIAS SEM SOL

mais que a perda apareça
mais que a vida pereça
mesmo que não haja
onde formar mais cascas
a pele vai dar um jeito
e vai postar-se diante da faca
da melhor maneira possível
inúteis vão ser os gritos
os pedidos os gemidos
e por mais que pareça ruim
a vida nunca tem fim

DEPOIS QUE MORREM

  sei para onde vão as mães depois que morrem a saudade forma um túnel e a luz que vem em sentido contrário as transformam em cinz...